Ser simétrico, conseguir executar bem os exercícios em ambos os lados, com o posterior seguindo exatamente a linha do anterior faz parte da retidão, penúltimo degrau na escala de treinamento. “Retidão significa que cada posterior segue alinhado com seu anterior, na reta e na curva”, explica Claudia Leschonski, médica veterinária e instrutora na Universidade do Cavalo (UC) em mais uma entrevista para a série especial que Adestramento Brasil está publicando sobre a escala de treinamento. De forma bastante didática, a professora detalha o que é retidão, faz analogias para facilitar a compreensão dos conceitos e aponta exercícios para conseguir alcançá-la. Confira a íntegra da entrevista:
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Adestramento Brasil — Qual é a definição de retidão?
Claudia Leschonski — Podemos entender a retidão do cavalo em três ideias básicas: simetria, força e coordenação. Isto significa que ele consegue fazer com o seu lado esquerdo as mesmas coisas que ele consegue fazer com o direito. Ou seja, é perfeitamente equilibrado. Para entender como não é normal, como isto é difícil, vamos fazer analogia com o ser humano. São raríssimas as pessoas que são perfeitamente ambidestras, coordenadas e simétricas, no sentido de que fazem as coisas tão bem tanto com a esquerda como com a direita. Isto significaria que você tem de escrever ou usar ferramentas igualmente bem com as duas mãos; que a sua força muscular é igualmente igual nos dois lados, quando a maior parte das pessoas tem o braço direito mais forte que o esquerdo. E também vale para os membros pélvicos, das pernas, como chutar a bola tão bem com a esquerda e a direita, conseguir iniciar todos os movimentos tanto com a esquerda como com a direita. Esta simetria, na verdade, não é natural, ela é adquirida por meio de um longo processo de trabalho, treinamento e condicionamento.
Como isto funciona nos cavalos?
Primeiro, há a questão da estrutura cerebral. A gente sabe que a metade direita do cérebro domina a parte esquerda do corpo e vice-versa; e também que uma metade do cérebro é dominante sobre a outra metade. Nos seres humanos, de modo geral, a metade dominante é a da esquerda, então, tendemos a ser destros. Nos animais isto acontece também: tem uma metade do cérebro que domina a outra. Outro fator que pode contribuir — e, alguns, especialmente os mais antigos, acreditam muito nisto — é a encurvatura do potro no ventre da mãe. Se vocês pensam no potrinho dormindo lá em posição fetal, se desenvolvendo, ele está enrolado sobre si mesmo. Afirma-se que a maioria dos potros se desenvolve durante 11 meses enroladinho para a esquerda e isto seria o natural para ele, estar mais encurvado para esquerda do que para direita. Com isto, a gente tem a impressão de que o lado esquerdo dele seja dominante e que eles seriam canhotos. O terceiro fator é que nossos cavalos são manejados preferencialmente pela esquerda, o que, claro, tem a ver com o fato de as pessoas serem destras.
Qual é a sua visão?
O que eu particularmente acredito é que todos estes fatores contribuem um pouquinho e quase todos os cavalos têm mais facilidade para o lado esquerdo. Isto notamos bastante ao galope, porque quase todos os cavalos galopam com muito mais facilidade para a esquerda, o que deixa as pessoas com a ideia de que o lado esquerdo domina o cavalo. Na verdade, não necessariamente. Se você tentar visualizar o cavalo encurvado para a esquerda, se ele se dobra mais facilmente para a esquerda, é porque o lado direito dele é mais amplo e a musculatura é mais desenvolvida, ele é mais comprido do lado direito, mais musculoso. Tenta imaginar o inverso, se ele passou a vida toda dobrado para a esquerda, no momento em que você for pedir que ele se flexione para a direita, aquela musculatura mais desenvolvida vai ficar mais comprimida e os ligamentos mais curtos do lado esquerdo vão doer porque vão se esticar. Então, o nosso trabalho e o nosso treinamento têm de ser para que o lado mais curto ou menos coordenado do cavalo seja tão eficiente quanto o outro. Toda a vez que você quiser explicar retidão para alguém ou para você mesmo você pode ter este conceito de que é escrever igualmente bem com as duas mãos ou chutar igualmente bem com as duas pernas e daí você começa a ter noção da dificuldade.
Como podemos averiguar a retidão de um cavalo?
Uma maneira simples de averiguar a retidão — e aí falamos de força e de coordenação dos movimentos — no cavalo, que é quadrúpede, significa que o posterior tem de seguir exatamente a linha do anterior. Se vocês conseguirem visualizar, olhar um cavalo de cima, vamos ter três linhas longitudinais: uma é a linha central, ela vai do focinho até a cauda, passando, portanto, por toda a coluna vertebral do cavalo; outra é a linha unindo os dois membros direitos — pé direito e mão direita; e a terceira linha é a mão esquerda e pé esquerdo. Se observar o movimento do cavalo de cima, estas três linhas vão ter de estar sempre paralelas entre si. O jeito mais fácil de entender isto é que o pé direito tem de pisar exatamente onde a mão direita pisou e o esquerdo também. A maioria dos cavalos não trabalhados, o posterior esquerdo vai tender para dentro, a garupa vai ter meio um desvio e estará jogada para o lado esquerdo; o posterior esquerdo, em vez de estar alinhado com a mão esquerda, estará mais para dentro. E, às vezes, quem está mais ou menos alinhado com a mão esquerda é o pé direito. Isto é muito comum em se observar em cachorros. Se olhar eles trotando, passeando na rua, ele quase nunca é reto, ele desvia a garupa um pouco para dentro, para o lado mais confortável para ele.
Então, retomando, retidão significa que cada posterior segue alinhado com seu anterior, na reta e na curva. A retidão também se verifica nos círculos. O que vale é que o encurvamento da coluna tem de ser uniforme e, em cavalos, o encurvamento da coluna é muito relativo em termos de esqueleto, porque a coluna vertebral do cavalo, da cernelha para trás, tem pouca flexibilidade tanto lateral quanto longitudinal. A flexibilidade é conseguida através da musculatura e, por isto mesmo, trata-se de um processo trabalhoso e tão mais difícil quanto menor o diâmetro do círculo. Para o cavalo é mais difícil fazer um bom círculo de seis ou dez metros do que um círculo de 20 metros, porque exige este condicionamento muscular para conseguir alinhar o posterior com o anterior.
O que acontece nos círculos menores?
Em muitas vezes, o que observamos é que os dois posteriores em um círculo menor começam a trilhar para o lado de fora e aí falamos a história de o cavaleiro só monta o anterior — as mãos e o pescoço — e deixa o posterior meio trilhando para trás, ou seja, esquece-se do posterior do cavalo. Por isto, que é tão importante a equitação focar muito nas ajudas de assento e pernas e não apenas na mão. A história da escala de treinamento está sempre voltando para o grande tema que é levar o cavalo a corretamente utilizar o seu posterior, dar mais importância aos posteriores e ao dorso que aos anteriores. O grande desafio da equitação técnica, mais avançada, é você se levar a usar seu assento e as suas pernas para controlar aquilo que você não enxerga, mas que é o verdadeiro motor do cavalo, que você tem de aprender a sentir. Quando falamos retidão e impulsão não podemos mais abrir mão desta ideia de que o posterior do cavalo é muito mais importante do que o anterior.

Como buscar a retidão?
Temos de convencer o cavalo a posicionar o posterior de maneira a se alinhar ao anterior, a mobilizar a musculatura de acordo. E aí é, de novo, usar as nossas grandes ferramentas de figuras e transições, utilizando o trabalho de duas pistas para mobilizar o pós-mão, o posterior do cavalo, a parte da musculatura abdominal, lombar e garupa. É um processo que pode levar, não só meses e anos, mas toda a vida do cavalo. Todos os grandes mestres falam que a obtenção e a manutenção da retidão é um processo que leva a vida inteira e tem de ser trabalhado sempre. E isto é lógico, porque a simetria natural sempre faz com que o animal queira voltar para o que para ele seja mais fácil e mais confortável. Como você, sendo destro, e querendo realizar coisas com a mão esquerda. Você pode aprender e pode ficar muito bom, mas a sua tendência reflexiva natural, se te jogarem alguma coisa, você, sem pensar, sempre vai pegar com a mão direita, porque tem mais facilidade e naturalidade.
Quais exercícios você recomenda?
Com seu cavalo aquecido e um nível razoável de impulsão, que significa que o posterior já está trabalhando ativamente, aí você pode, por exemplo, descer uma linha reta tendo a cerca do picadeiro como referência para perceber se a garupa está indo para mais para dentro ou para fora. Obviamente, você já estava percebendo isto desde que você começou a montar o cavalo, isto só quer dizer que o foco nosso agora passa a ser mais este. Uma maneira bem simples é usar as ajudas de pernas, como se fosse de cedência à perna para ir alinhando a garupa. Aliás, este exercício de ceder à perna é bom para condicionar o cavalo a posicionar a garupa onde a gente quer, a empurrar a garupa de um lado para outro até ele ficar alinhado. Este é o alinhamento da nossa máquina animal. Os grandes exercícios de duas pistas, como o ceder à perna, que é mais básico, a espádua para dentro, o travers, que é o famoso cavalo atravessado que leva o posterior a um maior grau de encurvatura, são os nossos grandes aliados neste momento.
Com isto podemos ir combinando retas, círculos maiores e círculos menores. Para mim é basicamente o exercício de desenvolvimento de sensibilidade, de sentir o que a garupa está fazendo e o que eu melhor posso fazer para alinhá-la com o anterior. Usando as pernas, as ajudas de assento, empurrando com o assento e também buscando um pouco mais de ação do posterior, ao mesmo tempo mantendo a movimentação do cavalo para frente.
E por que é importante também alternar os exercícios?
À medida que os exercícios ficam mais difíceis, como, por exemplo, um círculo de dez metros a galope, a retidão começa a ser mais importante e, quando começa a trabalhar isto, se perde a impulsão, o cavalo começa a diminuir a qualidade da passada, às vezes, fica irritado, quer se evadir do contato para trás da mão, para frente da mão, ou seja, os passos anteriores se perdem, porque aquilo é muito exigente e muito cansativo. Então, é muito importante alternar os exercícios de retidão com outros de descontração, botando o cavalo ativo para frente. O que eu devo focar mais: na impulsão, na descontração ou no estabelecimento do contato? Você já sabe a resposta: é naquilo que o cavalo estiver precisando mais naquele momento. Se ele ficou muito nervoso, preocupado, tenso, como um cavalo fino que não entendeu o que você está pedindo, tem de voltar à descontração. Se o seu cavalo é daqueles que se fecham e dizem ‘não brinco mais’, que vai embora, se ele ficou preguiçoso e atrás da mão, nós vamos voltar o foco para impulsão e com bastantes transições.
A alternância frequente tanto de transições quanto de figuras sempre é boa, porque, se você praticar com calma e suavidade, o corpo do cavalo começa a perceber que ele se manter reto, impulsionado etc. é a maneira mais fácil de atender às mudanças frequentes. Por exemplo, se você faz o típico trabalho de iniciante: dar voltas e mais voltas na mesma mão na sua pista, como se você fosse cavaleiro de enduro treinando enduro dentro da pista, o cavalo pode estar meio torto, garupa para fora, mão para dentro, caído de paleta; ele se acomoda naquela posição e não é muito grave, porque ele vai andando, ele se equilibra dentro daquela posição não tão correta. No entanto, se você estiver pedindo o tempo todo para ele, esquerda, reta e direita, círculos maiores e menores, andamento reunido, médio, forte, de trabalho, transições de passo, trote e galope, trabalho em duas pistas, cedência, espádua, travers… o único jeito de o cavalo fazer isto bem, com suavidade e economia de energia, é prestando atenção, começando a “se autocorrigir” nas questões de retidão e impulsão, lembrando que as duas andam meio juntas.
Você faz analogia de retidão com o alinhamento e balanceamento de carros. Como é isto?
O automóvel tem que ter alinhamento e balanceamento, mas vamos ficar com a questão do alinhamento. O que é um carro não alinhado? É um carro que você sente no volante te puxando, te arrastando para um dos lados mesmo em uma estrada boa, ou seja, mesmo perfeitamente em linha reta ele está te levando para esquerda ou direita. O que acontece? Você tem de fazer mais força no volante, na mão, para manter ele na linha reta, ele gasta mais combustível, porque ele está foçando para um lado que ele não deveria ir e o motor não consegue desenvolver plenamente a potência. É como se este motor estivesse gastando parte da energia com que ele deveria ir para frente querendo ir para o lado, devido ao fato de que o conjunto do automóvel não estar bem equilibrado. O desalinhamento entre os eixos dianteiros e traseiros está desperdiçando a energia do automóvel e tornando a experiência mais estressante e menos bem-sucedida para o motorista.
É muito fácil comparar isto com o cavalo. Por que seu carro está desalinhado? Às vezes é um problema no eixo; às vezes, é um problema mecânico; outras, ele está muito velho e os ‘n’ componentes dele já não estão tão ajustados e perfeitos tanto quanto saíram de fábrica, já houve desgaste natural; pneus podem estar carecas, mal calibrados, rodas mal balanceadas, suspensão defeituosa — todos os ajustes que não forem simétricos e alinhados do lado esquerdo ou direito do automóvel vão te dar a sensação do carro desalinhado. Eu gosto desta imagem, porque não adianta você colocar mais energia, gasolina mais cara, pisar com mais força no acelerador ou colocar direção hidráulica, quando o problema que causa tudo isto não for embora. Seu automóvel só vai te dar de novo a sensação que você deseja, se você resolve a causa do problema. A analogia com o cavalo se torna um pouco falha, porque se a gente falar que ele está com problema nas ferraduras, em uma das articulações (que seria a suspensão), se ele está com dor muscular, nas vertebras (que seria o problema do eixo torto), a gente vai entrar em coisas que saem um pouco da equitação e entram na veterinária, nutrição ou ferrageamento, mas é legal pincelar tudo isto, porque são pré-requisitos para nosso cavalo e nós termos uma boa experiência no treinamento.
O que eu brinquei da gasolina mais cara é porque às vezes a pessoa fala “nossa o cavalo não está avançando, vou dar mais ração”, mas ele vai ficar mais quente, mais explosivo e vai continuar andando torto. Um exemplo muito comum é a pessoa sentir a resistência de frente do cavalo, um cavalo quente, puxando, não estando bem permeável às ajudas de rédeas, e a pessoa vem com a clássica situação de que precisa de um freio mais forte ou colocar freio-bridão, que é uma situação muito comum no adestramento brasileiro e um pecado gravíssimo, com conjuntos muito antes da hora já indo para quatro rédeas ou, nas modalidades onde são permitidos, crianças e potros usando freios puros muito antes de estarem prontos para isto. Na analogia seria colocar uma direção hidráulica para ter mais controle fazendo menos força num carro totalmente desalinhado, torto, desbalanceado, pneus descalibrados… vai resolver? Não, não vai e vai piorar, porque as condições inerentes de descontrole do automóvel vão continuar.
Então, não adianta atacar o sintoma, tem de atacar a causa e muitas das causas do baixo rendimento dos nossos cavalos de nível intermediário é a falta de retidão e/ou falta de impulsão. Os recursos para tanto sempre têm de ser procurados na técnica e na capacidade do cavaleiro. Talvez uma das razões que as pessoas tenham dificuldade com a retidão é que ela naturalmente não faz muito sentido para os animais. Lógico que um cavalo naturalmente mais reto e menos torto vai ter maior qualidade na movimentação também na natureza — é aquele cara mais forte e mais resistente. Mas é muito difícil pegar um animal ao natural e convencer ele ou ele se convencer por conta própria que ele tem de trabalhar igualmente os dois lados.
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