Hans-Christian Matthiesen: sem educação e mudanças, esportes equestres correm o risco de acabar

É preciso educar as pessoas, tanto do meio do adestramento quanto de fora, para que os esportes equestres não acabem e os cavalos sejam vistos apenas em zoológicos. “Somos uma comunidade muito pequena. O mundo equestre é muito isolado, tendemos a permanecer nos nossos clubes e não olhamos para o mundo exterior. Precisamos que as pessoas de fora entendam a nossa forma de ter cavalos, porque senão não teremos o esporte daqui a 15 ou 20 anos”, alertou o dinamarquês Hans-Christian Matthiesen, juiz FEI L4/5*, em entrevista com Adestramento Brasil, durante o Campeonato Brasileiro e Taça Brasil de Adestramento, quando julgou provas do CDI 1* e 3* e ainda foi membro do júri de campo de algumas provas nacionais.

Hans-Christian Matthiesen é juiz internacional de adestramento desde janeiro de 2003 e de cavalos novos desde julho de 2014; também integra o painel supervisor de juízes. Ele falou com este noticiário no primeiro dia das disputas e antes de julgar as provas do CDI. Matthiesen compartilhou sua visão de para onde a criação de cavalos de esporte vai — ele também é veterinário —, e expressou preocupação sobre o futuro dos esportes equestres. Fez ainda um balanço de como evoluiu o julgamento do adestramento e o que os juízes buscam ver. “Gostamos de pensar que o adestramento é um esporte muito tradicional, mas precisamos olhar de uma maneira diferente, de uma forma mais moderna, caso contrário esse esporte não sobreviverá”, enfatizou.

Confira a seguir o bate-papo:

Esta cobertura é possível graças ao apoio de Rancho CariamaHaras SASA JE, Coudelaria Rocas do Vouga e Coudelaria Amor e Cura — clique nos nomes e confira as respectivas páginas no Instagram

Adestramento Brasil — É sua primeira vez aqui no Brasil?
Hans-Christian Matthiesen —
Sim, é a primeira vez que julgo no Brasil. Estou muito animado por estar aqui. É muito longe da minha casa. Julgo no mundo todo há muitos anos. Então, é sempre interessante ver outras partes do mundo e como elas lidam com a questão de esporte e coisas assim. Acho super interessante. E é maravilhoso estar aqui, ótima localização, lindo clube, mas também no meio da cidade grande.

Você teve a chance de julgar provas nacionais, pelo Campeonato Brasileiro?
Julguei provas de cavalos novos, de cinco e seis anos, o que é interessante. Como eu disse, eu acabo julgando em todo o mundo e muitos tipos diferentes de raças de cavalos. Aqui, tem muitos lusitanos e uma tradição longa e orgulhosa de criação de lusitanos, desde há muitos anos. E, claro, tivemos muitos lusitanos nas provas e alguns warmbloods. Já estive em Portugal muitas vezes ao longo dos anos, então, já vi muitos lusitanos e hoje você vê lusitanos em todo o mundo, não apenas em Portugal ou Brasil.

Há alguns anos, costumávamos ter uma diferença de notas significativa entre lusitanos e warmbloods, mas vejo que isso vem diminuindo. Você acha que essa lacuna está diminuindo? Por que?
Eu acompanho a criação de warmbloods também no meu próprio país, a Dinamarca, e eu acho que uma das coisas é que agora que a gente tem mais técnicas — eu sou veterinário, então, eu sei bem ainda que não trabalhe com reprodução. Na criação, já estão disponíveis tantas técnicas que você pode realmente melhorar a criação bastante rápido em comparação com o que poderíamos antes. Mas também acho que algumas dessas raças, como os lusitanos, que, como eu disse, tem uma forma tradicional de ver as coisas e com muito orgulho, então, eu acho que por esse motivo, leva mais tempo. Dentro dos warmbloods, eles estão mais abertos para usar coisas diferentes.

Então, por que você tem essa maneira muito tradicional do lusitano de ver as coisas, olhando para os diferentes studbooks e usando esses ou aqueles garanhões e matrizes. E também o fato de você não ter o mesmo tipo de sistema de aprovação, com muita aprovação para os garanhões, mas não realmente das éguas, que não necessariamente são testadas na equitação e em competição. Então, neste sentido, eu acho que a criação fica um pouco para trás.

Como eu disse, reconheço que é uma raça que tem muito orgulho, mas acho que, principalmente, se quisermos no futuro ter mais lusitanos na competição — e não para lazer — precisamos olhar para isso de uma maneira diferente. Porque, caso contrário, warmbloods vão simplesmente assumir o controle demais. E não se trata apenas de lusitanos, mas muitas outras raças em todo o mundo têm esse tipo de maneira de ver as coisas. Alguns dos cavalos têm sido muito bons nos movimentos reunidos, mas não é mais suficiente. Até mesmo os warmbloods melhoraram tanto a mecânica que agora eles também estão indo muito bem em piaffe e passage. Então, eu acho que agora é hora também de algumas das outras raças melhorarem algumas das outras coisas que dão elasticidade, cobertura de chão e melhorar alguns movimentos.

O que juízes de cavalos novos estão buscando hoje? O que querem ver em um jovem cavalo?
O que procuramos é, claro, a qualidade dos andamentos (gaits) e isso é meio óbvio, porque é assim que todo o sistema está configurado, já que temos que dar notas para as andaduras, mas também avaliamos o desejo e a aceitação do cavalo de que ele está realmente disposto para aquilo. Mas nem todos os cavalos são adequados para as classes de cavalos novos. Você sempre pode, se quiser, testar de alguma forma para ver como o seu cavalo está neste sistema; sempre pode ir a uma competição, mas, se você espera que eles saiam muito bem e obtenham noves e dez no trote ou no galope, você tem que melhorar em algum lugar.

Eu não tive a oportunidade de assistir à sua palestra sobre o GP. Poderia compartilhar comigo os tópicos principais?
Hoje em dia, a educação é cada vez mais importante. Minha palestra não foi, na verdade, sobre grande prêmio. Mostrei alguns vídeos curtos. Mas o que eu gosto mesmo é que, como os juízes, temos de ser muito honestos na nossa maneira de ver. Gosto que sejamos muito analíticos e procuremos ser justos na nossa forma de avaliar os erros, mas também a qualidade. Acho que a educação é muito importante no nosso esporte, se quisermos manter a equitação no futuro. Às vezes, acordo no meio da noite, quase suando, porque acho que daqui a 15 anos poderemos não ter nenhum tipo de esporte equestre. Precisamos de educação de todos os oficiais, mas também dos cavaleiros e eu esperava ter visto muitos mais cavaleiros e treinadores no seminário.

Um dos grandes problemas do desporto equestre é que somos uma comunidade muito pequena, nosso mundo é muito pequeno. Agora estamos sentados aqui, nesse clube maravilhoso, mas também temos que perceber que temos grandes muros ao redor do clube. O mundo equestre é muito isolado, tendemos a permanecer nos nossos clubes e não olhamos para o mundo exterior. Precisamos que as pessoas de fora entendam a nossa forma de ter cavalos, porque senão não teremos o esporte daqui a 15 ou 20 anos. E, se não tivermos esporte, não teremos criação. Ninguém criará cavalos, porque não haverá nada para mostrar. E, então, os cavalos só estarão em zoológicos ou na TV no futuro.

A gente realmente tem que fazer alguma coisa, sabe, para desenvolver o esporte, tentar melhorar a nossa forma de montar e também explicar para o mundo lá fora: “É por isso que temos cavalos. É por isso que temos benefícios em treinar cavalos”. Temos que ser honestos também no nosso esporte e, na verdade, não temos bons argumentos para competir. A competição é apenas para o cavaleiro, nunca para o cavalo. É para os cavaleiros praticarem, para avaliarem o quão são, mas nunca é uma configuração natural; nunca é natural para o cavalo. Se você perguntar ao seu cavalo pela manhã, você quer ir a campo ou a uma competição? Tenho certeza que ele não escolherá a competição.

Concordo; educação é fundamental para todos. Falando de julgamento, você acha que cavaleiros, treinadores e juízes estão buscando a mesma coisa?
Bom, é um esporte de julgamento, então, há críticas aos juízes, mas eles são responsáveis ​​​​pela forma que se monta. Se damos boas notas a um tipo de montaria, todos os treinadores e cavaleiros querem seguir esse caminho. Mas, se isso for verdade, é justo, então, os juízes têm que melhorar, mas todos precisam melhorar. Quero dizer, essa é a questão de toda a ética de ir a uma competição como cavaleiro. Você vai para o seu próprio bem, mas você também leva seu cavalo toda vez. Quando você chega à casa, à noite, depois da competição, você ainda tem que olhar seu cavalo nos olhos e dizer: “tivemos um bom dia hoje, foi um bom treino, foi uma boa apresentação ou fiz isso apenas para agradar os juízes?”. Porque, se for isso, você está no caminho errado.

Também acho que todos somos obrigados a fazer um bom trabalho, precisamos conversar juntos e estar abertos às críticas que vêm também de fora, das pessoas que não praticam o esporte equestre. Precisamos prestar atenção ao que eles dizem quando nos criticam, falando que os cavalos estão encurtados no pescoço ou que somos muito rudes no contato. Temos que olhar isso, caso contrário, nunca melhoraremos e estaremos cada vez mais isolados e então, a certa altura, não haverá mais esporte equestre

Há quanto tempo você julga?
Não sei, há uns 25 ou 30 anos.

E o que mudou ao longo destas décadas?
Acho que uma coisa boa — e eu já julguei todos os níveis — é que, quando você olha para os níveis mais altos e eles são uma pequena janela, porque temos tantos cavalos em todo o mundo durante as competições, mas a gente sempre olha para aquela janelinha, que é a parte Internacional, e felizmente é muito bom vermos cada vez mais leveza, vemos cavaleiros jovens surgindo e fazendo trabalhos super bons cavalos repletos de talento, com leveza, com contato agradável, com cavalos que parecem felizes por quererem trabalhar. É preciso, pelo menos, parecer que o cavalo quer trabalhar para o cavaleiro.

Esta deveria ser a prerrogativa inicial?
Acho que acho que deveria, caso contrário, temos que olhar para o esporte e mudar completamente o formato, que só buscamos harmonia e leveza, porque como está agora é um esporte muito técnico e é difícil para as pessoas entenderem todos os pequenos detalhes.

Da perspectiva do julgamento, comparando 20 anos atrás e agora, você busca as mesmas coisas?
Em princípios, sim. O cavalo mudou e esse é o maior fator: o cavalo e o talento deles mudaram tanto; e também os cavaleiros. Acho que muitos cavaleiros perceberam agora o quanto é preciso para estar no mais alto nível. Você tem que ser um verdadeiro atleta. Você tem que estar super em forma. Você tem que ser realmente, se quiser competir no mais alto nível. Então, eu acho que, sim, os cavalos mudaram, e, no geral, também tem isso, que é a forma de ver os esportes equestres e o adestramento, que gostamos de pensar que é um esporte muito tradicional, mas precisamos olhar de uma maneira diferente, de uma forma mais moderna, caso contrário esse esporte não sobreviverá.

Foto: Roberta Prescott / Adestramento Brasil

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