“A embocadura é só uma maneira de a gente transmitir a nossa intenção ao cavalo, mas ele tem de estar previamente preparado para entender o que se pede e ter condições físicas e técnicas para executar”, explica Claudia Leschonski, médica veterinária e instrutora na Universidade do Cavalo (UC). Na primeira parte da entrevista, Leschonski frisou que ritmo e descontração são objetivos da doma e abordou os fundamentos de como, idealmente, deve ocorrer o treinamento do animal — leia aqui. Agora, a especialista analisa como deve ser o contato e fala sobre o que fazer e o que não fazer para obtê-lo. “Há um estrago muito maior feito nos cavalos por excesso de contato mal-entendido do que por falta de contato.”
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Adestramento Brasil — Depois de obter o ritmo e a descontração, o contato é o próximo objetivo. Como ele deve ser trabalhado?
Claudia Leschonski — Para falar de contato, temos de abordar três termos que são intercorrentes aí: apoio, contato e também alguns chamam de aceitação da embocadura. Pessoalmente, eu gosto de tirar um pouco o foco da boca. Na verdade, a boca não faz nada que o corpo não esteja preparado para fazer. Não é o inverso. Se o corpo está bloqueado, se está assimétrico, se o cavalo não tem equilibro, se não tem condição, se não tem capacitação no corpo dele, na musculatura, na coordenação motora, na interação de tendões e ligamentos, não é a boca branda que vai conseguir ele fazer. O que anda no cavalo é o aparelho locomotor, esqueleto e musculatura, além do cérebro coordenando, não é a boca que vira, anda, flexiona, ela é apenas a nossa central de comando, através das embocaduras. Tanto que isso hoje é questionando para quem vai para o bitless.
Ou seja, temos de pensar o que queremos, seja através da boca, através do hackamore e de outros sistemas de controle que não estarão dentro da boca, ou mesmo o bitless.
O que buscamos é direcionar o cavalo a ir para onde a gente gostaria que ele fosse e isto com maior grau de equilíbrio, harmonia, suavidade e de precisão possível. Como imaginar o conjunto de direção de um automóvel, o volante não é a direção, é só onde o motorista transmite sua intenção para o automóvel. Se o automóvel está desalinhado, desbalanceado, com o eixo torto, se o motor está com problema, ou seja, se o carro está ruim, não é uma direção hidráulica que vai magicamente melhorar todo o conjunto. A embocadura é só uma maneira de a gente transmitir a nossa intenção ao cavalo, mas ele tem de estar previamente preparado para entender o que se pede e ter condições físicas e técnicas para executar o que se pede.
Como funciona toda esta mecânica até se chegar à aceitação da embocadura?
Se imaginar todo o antemão, todo o conjunto de frente do cavalo, ou ainda o que no cavalo montado fica à frente do cavaleiro, que são de certa maneira os anteriores, o pescoço, incluindo a nuca, e a cabeça. É assim que a gente direciona o cavalo. É lógico que entram outras coisas, começamos a pensar na retidão e depois na impulsão, mas são coisas mais para frente na pirâmide. Neste momento, agora, queremos que o cavalo obedeça nossa indicação de ir para graus diferentes de esquerda e direita e se manter em frente.
A gente pode traduzir isto basicamente lateral e longitudinal. Lateral é mais fácil de entender ou de explicar: se você pede para esquerda, ele vai para esquerda; se pede para direita, vai para direita; círculos maiores, círculos menores; encurvatura desejada; resto do corpo seguindo razoavelmente reto a indicação dada pela frente. Esta é a condução lateral e a aceitação lateral da embocadura e, logicamente, a linha reta entra aí em algum momento. E nem sempre a linha direta, reta, é tão fácil nos cavalos jovens e de correção. A gente sabe que eles tendem a desviar e exige um pouco de trabalho.
Já o controle longitudinal é aquilo que as pessoas mais comumente associam à aceitação de embocadura ou ao contato. Seria toda a linha superior do pescoço, uma longa linha passando por toda a crina, cernelha até as orelhas, passando pela nuca, descendo pela frente e terminando na boca. A linha superior do antemão do cavalo. Tudo isto está flexionado e direcionado de modo que a cabeça do cavalo parece estar suspensa das mãos do cavaleiro, aquele pequeno peso agradável indo para baixo. Sempre penso em uma vara flexível, por exemplo, de pescar, de bambu, com uma pequena esfera suspensa por ela. Esta é a aceitação desejada do cavalo do nosso comando de frente, da embocadura. O inverso disto nesta dimensão longitudinal é quando você tem impressão que o peso, a esfera está espetada numa vara mais rígida, como se você estivesse carregando na sua frente um cabo de vassoura com um peso na ponta oposta dele e tivesse andando por aí e aquilo te puxando para cima, para o alto, querendo tomar as rédeas da sua mão e tracionando elas para cima. Alguns de vocês podem pensar na história do cavalo invertido, que para mim significa justamente que ele está trabalhando na direção inversa que imaginamos do aceitado.
Como o cavaleiro deve se portar?
Desta própria definição, já está claro que o pré-requisito é que o cavaleiro tenha mãos suaves e independentes, não precisa no cotidiano ter de se agarrar nas rédeas para manter o equilíbrio, conseguir a direção à força, tudo isto arruína, estraga a ideia do contato. Mas como ter mãos suaves? Isto se dá através de um bom assento. Se você precisa das mãos para se manter em cima do cavalo é porque seu assento não é desenvolvido e não precisa nem buscar a ideia do contato, é melhor ficar em uma equitação de lazer, de passeio, onde usa as rédeas longas e os comandos de direção passam a ser pontuais, o que não é inferior e nem pior, é só outra forma de equitação.
Por sinal, existe um estrago muito maior feito nos cavalos por excesso de contato mal-entendido do que por falta de contato. A grande parte dos cavalos com problemas de embocadura, de apoio, invertidos ou encapotados, o que é ainda pior do que invertido, a origem de tudo isso é mão dura, mão descontrolada, com pouca coordenação de movimento. A origem física e técnica da mão ruim é o assento ruim. A outra origem seria um descontrole emocional, o cavaleiro está com raiva, irritado, as coisas não estão indo e ele dá o famoso tranco na boca do cavalo, por exemplo. Ou a pessoa está com medo, tensa e se segura — toda tensão indevida nas rédeas estraga o contato.
Como você define contato?
O contato é muito mais o resultado dos pré-requisitos cumpridos, da parte do cavaleiro, do bom assento, das boas pernas, da capacitação técnica para executar bem as ajudas e o controle emocional em todos os andamentos. Da parte do cavalo, os dois primeiros quesitos — ritmo e descontração — bem cumpridos e, lógico, uma vez que o cavalo tenha concluído a doma, a iniciação dele (ele, de alguma maneira, já saber ir para as direções: frente, trás, esquerda, direita, cima). É como se o cavalo, antes do contato, tivesse a direção, mas na rédea longa.
A partir do momento que tem o contato e a aceitação da embocadura, você começa a ter a comunicação constante, que é o pré-requisito para o restante, porque aí você tem maior disponibilidade de todo o corpo do cavalo, você pode começar a alongá-lo, encurtá-lo, começar a aumentar a reserva cinética, a mola de impulsão do cavalo que regula para ter mais ou menos energia de explosão. O pré-requisito para isto é desenvolver o contato e isto significa que ele aceita a sua mão, que ele busca a sua mão – e tem de ser uma coisa harmônica, onde nenhum dos dois deveria forçar a relação, usar da força física.
Lógico que entre o ideal e a realidade existe um longo caminho, mas esta é a meta que a gente busca.
Como conseguir isto?
Aceitação da embocadura não é uma coisa que o cavaleiro força no cavalo, não somos nós que dizemos ‘aceite a embocadura agora’, você leva o cavalo a buscá-la e o cavalo oferece. Esta é a ideia do contato, o cavaleiro convida — e isto não é forçar — até que eventualmente o cavalo aceita o convite, porque o contato dá para o cavalo segurança e apoio, não tanto no sentido físico, mas no sentido de segurança de saber a direção que vai. É ter cavaleiro e cavalo caminhando de mãos dadas em um leve contato. Qualquer alteração ou tensão ou alerta se comunica rapidamente e isto dá segurança para o cavalo.
O contato ininterrupto e suave fluxo de comunicação discreta, quase que sussurrada onde o cavaleiro fica permanentemente transmitindo as suas intenções ao cavalo. Isto é uma coisa bem característica da equitação clássica europeia — adestramento e salto — e, portanto, destinada a períodos curtos de trabalho mais intenso. Não é uma coisa que você vai querer usar o tempo todo em uma cavalgada, num exterior, num enduro, numa atividade de equitação western mais prologada, onde os comandos são mais pontuais. Mas dentro do trabalho intenso, de plano, é este contato que a gente busca.
3 respostas para ‘Toda tensão indevida nas rédeas estraga o contato, aponta Claudia Leschonski’